O software está a açambarcar o mundo

Feb 21, 2022 16:00 · 961 words · 5 minute read

Há um pequeno ensaio que data de meados de 2011, com o título que inspirou este texto. Why Software Is Eating the World, da autoria de Marc Andreessen, é incrivelmente presciente: à data que é escrito, identifica uma série de tendências que, estando ainda na sua infância, acabam por se revelar centrais ao desenvolvimento do mundo dos 10 anos seguintes. Nomeadamente, a importância que o software (muito mais do que o hardware) tem na nossa vida, seja a que nível fôr.

O texto foca-se bastante nos usos produtivos do software, ou seja, as situações onde há uma expansão da fronteira de possibilidades de produção de processos já existentes: em vez de usar meios analógicos para desempenhar as funções de um dado negócio, a digitalização (através da introdução de software) permitiu que as mesmas tarefas fossem realizadas de maneira mais rápida, integrada, e em última análise mais rentável. Um exemplo claro disto é a introdução de processadores de texto ou de folhas de cálculo nos ambientes empresariais. Mas estas consequências são relativamente óbvias, e a sua discussão não nos oferece grandes motivos de interesse.

Contudo, há duas novas situações proporcionadas pelo software onde nos parece importante tecer considerações. Ambas estão relacionadas, apesar dos seus propósitos serem diferentes; relacionadas, pois ambas se alimentam uma da outra, e por isso mesmo acabam por ter no seu âmago os mesmos actores a desempenhar papéis centrais. Apoiado pela introdução e difusão de infra-estruturas e hardware (e.g., internet de banda larga, acesso sem fios, portáteis, smartphones, etc), estamos a pensar por um lado na forma como deixamos que o software fosse tomando conta da ocupação do nosso tempo livre; e por outro, a aceitação da construção de perfis detalhados da nossa personalidade através da utilização desse mesmo software.

O veio condutor entre estas duas peças é algo a que se chama machine learning. Não querendo aqui discorrer sobre a estupidez de chamar “aprendizagem” a algo que é, essencialmente, um processo de ingestão de dados e posterior refinamento de um dado algoritmo, é esta a chave que permite desbloquear todo o processo de feedback positivo que garante que, por um lado, as pessoas passem mais e mais tempo a consumir conteúdos nos seus tempos livres (porque têm recomendações que são feitas à sua medida), e por outro que as empresas tecnológicas possam oferecer aos seus utilizadores essa experiência (porque são capazes de construir essas recomendações graças aos ditos algoritmos de machine learning).

Plataformas como o Youtube, Facebook, Instagram, Snapchat, Tiktok, Spotify, Apple Music ou Netflix, têm em comum o facto de serem dedicadas à disponibilização de conteúdos para entretenimento; em simultâneo, todas elas se apoiam na construção de perfis dos seus utilizadores para os manterem ligados. Sabemos hoje em dia que todas estas plataformas gastam centenas de milhões de euros todos os anos para garantir que os seus algoritmos são o mais “avançados” possíveis, e a quantidade de dados coleccionados sobre os seus utilizadores é algo que faria corar um agente dos serviços secretos de há 20 anos atrás. Disto depende a sua sobrevivência.

Vale a pena reflectir na inversão que está aqui implícita. Na sua génese, o software é um termo genérico para um conjunto de instruções, numa linguagem artificial, para ordenar a máquina a realizar um dado conjunto de tarefas; a hierarquia estava bastante bem definida: o utilizador estaria no controlo, e a máquina limitar-se-ia a cumprir com as tarefas que lhe fossem dadas, dentro dos limites da sua programação. Hoje em dia, é fácil ver como isto deixou de ser o caso. Sim, ainda é possível usar as máquinas dentro deste paradigma, mas arriscaríamos dizer que a maioria das interacções que são tidas com o software se inverteram; passamos a ser agentes quase passivos, puros consumidores da programação que os algoritmos escolhem para nós. Em comparação, isto quase que nos torna saudosos dos tempos dos jornais, rádio, ou televisão; ao menos aí ainda se podia dizer que havia uma semelhança de interacção humana, ainda que bastante assimétrica. Mas mesmo isso acabou.

Fala-se cada vez mais da existência, e respectivo perigo, das interacções parassociais. Isto é, as pessoas que estão por detrás dos ecrãs julgam que estão a construir relações pessoais com quem faz os vídeos que vêem. A fama de youtubers, vloggers, tiktokers, ou prostitutas do OnlyFans, passa em grande medida por aí. Mas há aqui um grande erro de análise, provavelmente despoletado pelo desconhecimento do mecanismo de funcionamento destas plataformas. Mesmo em sentido lato, a relação que é construída não é nunca com o produtor de conteúdos, mas sim com o algoritmo da plataforma em questão. É esse algoritmo que, na maioria dos casos, vai decidir o que a pessoa vê a seguir; e, ao mesmo tempo, é esse algoritmo que decide (por via dos incentivos monetários associados ao número de visualizações) que conteúdos são produzidos, pois é ele que decide que conteúdos chegam aos olhos dos consumidores de conteúdos.

Nas Notas Soltas que o Ilo publicou recentemente no Portugal Integral, a primeira nota dá conta de como grande parte da realidade que experienciamos hoje em dia é intermediada pelos ecrãs; e se esta constatação é certeira, não parece ir longe o suficiente. Se são os ecrãs que desempenham o papel de porta de entrada, os algoritmos que estão a funcionar dentro do edifício têm o papel de escolher aquilo a que podemos aceder. Muito mais do que ecrã, aquilo que realmente filtra a nossa realidade na virtualidade (e esta expressão já revela muito dos problemas associados à nossa mundividência) é a existência de software que desempenha o papel de filtro na rede. Se isto não nos deixa extremamente desconfortáveis, então pouco há a fazer. Mas se percebemos o que está aqui em jogo, então há que arrepiar caminho, e morrer para este mundo.