No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. (João 1:1)
A Lenda de S. Martinho sempre me foi muito próxima. Por um lado, porque S. Martinho é o Santo Padroeiro da cidade de Penafiel, cidade sede do concelho onde vivi (e vivo) a maior parte da minha vida; a Festa em honra deste Santo, a 11 de Novembro, é usada também para comemorar o Magusto, sendo associado à celebração celta do Samhain e ao Dia de Todos os Santos. É um dia extremamente bonito, já que o Dia de S. Martinho marca também o começo do Inverno e da “escuridão”, o fim de um ciclo e começar de um outro; daí que o Verão de S. Martinho seja o último fôlego antes do que aí se aproxima.
Reza a Lenda que, aquando das viagens enquanto soldado no Império Romano, e durante um dia de forte intempérie, Marinho cruzou-se com um mendigo que estava praticamente nu e a quem ninguém ajudava. Confrontado com tal situação, Martinho decide que o correcto será dividir a capa que o protegia dos elementos em duas metade, entregando uma dela ao mendigo para ele se proteger. Duas coisas aconteceram, então: por um lado, a intempérie desapareceu e seguiram-se dias de bom tempo, e aí tem a origem do Verão de S. Martinho; por outro, Martinho tem um sonho com Cristo e os seus anjos, onde o Senhor diz à sua corte que Martinho, mesmo sendo novo na Fé, O cobriu com a sua veste, pondo de lado a vaidade e pondo o sentimento de partilha, parte integrante dos ensinamentos de Cristo, acima de tudo o resto.
Apesar de a interpretação do significado da Lenda ser obviamente extremamente importante, não será este o ponto central deste texto: por um lado, não me sinto qualificado para fazer uma análise teológica das acções e qualidades de S. Martinho e da sua vida; e por outro, essa análise já foi feita e amplamente divulgada. Queria, contudo, reflectir sobre a forma como, enquanto pessoas modernas, escolhemos olhar para a Lenda, e de como retiramos significado dela. Daí o título.
Aos olhos da modernidade, as acções de Martinho não serão nada de especial. Dar metade de uma capa não representa um acto de sacrifício assim tão grande, mesmo tendo em conta o contexto. Certamente que enquanto soldado, Martinho até poderia ter dado a capa inteira e pedir uma nova ao seu regimento ou comprado uma nova ou uma série de outros actos de caridade. E mesmo considerando a visão que Martinho teve de facto existiu, não é difícil de concebê-lo como “só um sonho”: todos nós temos sonhos, e alguns deles até com significado para as nossas vidas porque nos ajudaram a perceber algo sobre o nosso subconsciente. Até se aceita que isso possa ser uma maneira de aceder o nosso espírito, mas querer concluir daí que o Espírito Santo (sob a figura de Jesus) fala connosco e de facto existe, calma lá.
Tudo certo. Claro que podemos construir a realidade do que aconteceu a S. Martinho olhando apenas para a quantidade relativa de riqueza que S. Martinho partilhou com o mendigo, bem como o sonho dele não representar mais do que sinapses no seu cérebro. Mas, e usando um argumento muito moderno (tão moderno que é pós), isso é só uma maneira de construir a realidade. Mas onde a modernidade erra é em achar que pelo facto de haver muitas maneiras de construir a realidade, é obrigatório que nenhuma delas se superiorize às restantes, pois não há nenhuma Verdade ou Princípio.
O erro do argumento muito moderno é olhar apenas para o material, e para o que está “para dentro”. Incapaz de conceber algo superior a ele mesmo, falha em reconhecer que há um princípio último, colocado em precisa oposição à realidade material. Podemos chamar-lhe “espiritualidade”, podemos pensar nele como “tradição”, ou o que bem nos aprouver. Mas a incapacidade de pensar na realidade como também contendo algo que não é redutível ao material parece-me ser o calcanhar de Aquiles dos tempos que vivemos.
Enquanto pessoas modernas, é-nos muito difícil conceber que partilhamos algo com a restante Criação para além de uma certa percentagem de moléculas no âmago da nossa constituição. E mesmo quando nos apercebemos de coisas que não são redutíveis ao material — coisas como a Família, o Amor, ou Deus —, tentamos explicá-las recorrendo a princípios que são “virados para dentro”: tudo se reduz ao ser humano e aos “processos emergentes” provenientes das relações entre os átomos, moléculas, sinais nervosos, etc, do nosso corpo.
Mas a Verdade é que a “quantidade”, entendida como manifestação da matéria, não pode esgotar a realidade. Não se pode esquecer a essência, e olhar só para a substância. E a Verdade é que o acto de S. Martinho foi um acto essencialmente Bom; através dele podemos conceber pura bondade, e de entrega a um princípio maior que nós. E esse princípio foi mais tarde revelado a S. Martinho através do seu sonho. Porque não podemos conceber o entendimento do princípio sem primeiro ser introduzido a ele - pois o entendimento é um caminho a percorrer, que não pode ser absorvido “à primeira”, visto ser algo superior ao conhecimento que se adquire de forma moderna.