Para quem não conhece, o Sci-Hub é projecto que existe há um pouco mais de 10 anos, e cujo objectivo prende-se com a disponibilização de milhões de artigos de investigação de todas as áreas da ciência, que de outro modo estariam vedados à esmagadora maioria das pessoas graças ao modelo de negócios de pura extracção de rendas das revistas de publicação cientifica, em especial a Elsevier e a Springer Nature. A juntar aos vários processos em tribunal contra o Sci-Hub, a autora do projecto Alexandra Elbakyan recentemente descobriu que já há dois anos que o FBI se encontra a vasculhar as suas contas privadas. É óbvia a tentativa de tentar fechar o Sci-Hub usando todos os meios à disposição. E se há duas coisas que eu odeio ver, são rent-seekers e copyright, bem como o Estado a meter o bedelho onde não deve.
Ainda assim, a comunidade encontrou uma solução — não para os problemas legais da Alexandra, mas pelo menos para garantir a continuação do Sci-Hub. Os arquivos do Sci-Hub foram replicados, e tornados partilháveis através do protocolo BitTorrent. A forma como tal se operacionaliza pode ser encontrada neste post do reddit. Tanto quanto consigo perceber, já se garantiu que pelo menos 7 cópias completas da totalidade do arquivo se encontram espalhados um pouco por todo o mundo graças ao esforço de muitas pessoas que dedicam o seu espaço em disco e ligação à internet para albergar uma parte de um bem maior.
Há um princípio na ciência dos computadores que se chama decomposição, e que nos diz que se um problema é demasiado grande para ser tratado correctamente, o truque passa por separá-lo em problemas mais pequenos e, por conseguinte, mais tratáveis. N. N. Taleb, para ilustrar o princípio da não-linearidade das respostas convexas e côncavas, usa um exemplo tirado do Midrash Tehillim para fazer valer o mesmo ponto: é bastante mais fácil movimentar mil pedras de 1kg cada do que uma pedra que pese 1 tonelada. É também assim que a Natureza funciona: a decomposição de um corpo, após a sua morte, é um processo de partir um problema maior em partes mais simples.
A replicação do Sci-Hub segue este princípio, pois o arquivo foi decomposto numa série de diferentes partes, para ser mais facilmente partilhável pela comunidade. Se seria quase impossível encontrar pessoas disponíveis para guardar a replicar a totalidade do Sci-Hub (afinal de contas, são 77TB de livros e artigos científicos) e partilhá-lo de forma consistente, é bastante mais fácil encontrar 1000 pessoas dispostas a partilhar ~77GB. E será possível olhar para o princípio da decomposição e pensar que poderá ter algum interesse para poder pensar a internet.
A Internet é uma ferramenta que genuinamente assusta. Porque todos percebemos o seu potencial, nem que seja só intuitivamente: um gigante sistema de pura condução e armazenamento de informação, que é um verdadeiro fractal (a internet é composta de internets mais pequenas que por suas vez é composta por internets mais pequenas, e por aí fora) e feito pelas pessoas e empresas que nela decidem participar. Quase infinitamente moldável por virtude de ser neutra no que toca aos dados que nela habitam, conseguimos encontrar no seu âmago do melhor e do pior que a humanidade consegue fazer.
Apesar de ser só uma ferramenta, o seu potencial torna-a numa das mais poderosas que a engenharia humana jamais concebeu. O impacto que tem nas nossas vidas só pode ser descrito como pervasivo. Não só tem o potencial para englobar quase todos os aspectos da experiência humana, como se torna cada vez mais a única avenida para o realizar. E quanto menos nos lembramos de um tempo anterior à internet, vai-se tornando cada vez mais difícil resistir ao açambarcamento da sua vida por parte de tal tecnologia. Se Neil Postman já se impressionava e nos avisava do potencial que a TV tinha para alterar fundamentalmente a forma como comunicávamos (e, por conseguinte, vivíamos), o que não diria ele da revolução do computador pessoal, da internet, e do smartphone. A internet e as suas consequências têm sido um desastre para a espécie humana. Mas, contudo, não me parece que tenha que ser assim.
Se a internet se está a revelar um problema gigante, a solução poderá passar pelo princípio da decomposição. Quando aplicada à estrutura da internet, isto quererá dizer que a maneira como concebemos a internet terá de ser fundamentalmente diferente: em vez de caminhar para um destino cada vez mais centralizado e indiferenciada, a solução passará por uma internet que seja content-aware e location-aware; isto quer dizer que as comunidades poderão ter o controlo sobre o tráfego que passará pela sua internet, bem como estabelecer incentivos para regular a sua utilização e beneficiar utilizações que sejam locais e benéficas para a comunidade versus a utilização de plataformas das grandes empresas tecnológicas. Um exemplo de implementação deste tipo de internet poderá ser visto na prática olhando a Althea. A criação de pequenas internets, que poderão ou não estar interligadas entre si, e que estão sob o controlo das comunidades que as usam, revela-se como a saída sã para (praticamente) todos os desafios que a internet qua rede global interligada está a colocar à nossa sociedade.