O bicho não é propriamente interessante em si mesmo. Por muito que se diga o contrário, é só mais uma doença. No entanto, a resposta que foi dada ao bicho é reveladora: olhar para aquilo que aconteceu nos últimos dois anos, e perceber a forma como se foi reagindo, colectivamente e individualmente, é bastante importante. O bicho e o que gira em seu redor poderá ter sido o ponto de inflexão de uma época, marcando aquele momento em que as coisas tiveram que mudar para que tudo pudesse ficar na mesma. E se isto poderá parecer à primeira vista contraditório, tal só revela a importância do acontecimento.
Mal o bicho se instalou na nossa psique colectiva, a maioria foi concordando com o progressivo apertar do garrote. Podemos já nem nos lembrar, mas a experiência dos confinamentos gerais que foram vividos durante o ano de 2020 foi algo de que já não havia memória: ruas vazias, comércio fechado, inexistência de trânsito pedonal ou veicular; só aos “trabalhadores essenciais” era concedida a excepção de poder circular na via pública, e apenas mediante a apresentação de um justificativo. A vida começava dentro de casa, e acabava nas idas ao supermercado ou nos passeios higiénicos - mas apenas para as almas mais intrépidas que arriscavam cruzar-se com o bicho, e desafiar as probabilidades de o contrair.
O discurso sobre o bicho foi-se estreitando mais e mais. E foi-se orientando não numa óptica de resolução de fundo do problema, mas sim de se poder voltar ao que havia antes. Só isto já revela bem a esquizofrenia do que se vai vivendo: sabendo-se, por exemplo, que o bicho maltrata especialmente pessoas com as ditas “comorbidades”, não se investiu um único cêntimo no seu tratamento e prevenção; em vez disso, depositaram-se todas as fichas na aposta de que íamos ter uma solução rápida e indolor, sob a forma de imunização da população através de um processo de vacinação em grande escala. E quem sugerisse algo diferente (independentemente de se dar valor ou não às ditas vacinas) foi sendo posto de parte.
Também não nos podemos esquecer da altura em que ainda houvesse quem sugerisse que isto poderia ser uma oportunidade para corrigir uma série de problemas de fundo na nossa sociedade. Podemos já nem nos lembrar, mas até 2019 havia um relativo consenso que algo estava bastante mal com a forma como levávamos o mundo: desde a poluição que alastrava não só nas cidades, mas já começava a tomar conta do mundo rural e florestal; também as grandes desigualdades sociais que encontrávamos patentes na distribuição da riqueza; o alastrar das doenças de foro psicológico, especialmente entre as populações mais jovens; o degradar das condições de vida, e a incapacidade material de formar família; e por aí afora.
E, cerca de 2 anos volvidos desde o aparecimento do bicho, podemos rejubilar. Afinal de contas, esta crise foi de facto extremamente bem aproveitada. As grandes empresas de tecnologia e de retalho e distribuição alimentar viram as capitalizações nos mercados financeiros a inchar como nunca antes visto - não só fruto do aumento da sua utilização, mas também por serem um dos poucos “portos seguros” a nível de investimento nos mercados financeiros. A poluição visível ficou ainda pior, com a nojeira das máscaras usadas atiradas para o meio da rua a ficarem como lembrete do quão respeitamos o espaço comum e a Natureza.
Mas o mais chocante é que se achávamos que o lembrete de que a nossa vida não nos pertence, e nos pode fugir a qualquer momento, seria suficiente para nos levar a reavaliar as nossas prioridades, estaríamos bem enganados. A narrativa foi oscilando entre o “voltar ao normal” e a habituação ao “novo normal” (que é o velho normal, mas ainda mais doentio). Em vez de construirmos comunidades, destruímos as poucas que ainda existiam; patologizamos o “outro”, reduzindo a nossa capacidade de interacção com terceiros ao vector de transmissibilidade do vírus; substituímos o “bom dia/tarde/noite” com o atravessar da rua para o outro lado para evitar cruzar no passeio com algum transeunte.
Genuinamente, o mundo parou. Francis Fukuyama, que há muitos anos vaticinou que as democracias liberais capitalistas do Ocidente seriam o “fim da história”, estava afinal de contas mais certo do que errado. Apesar de ser discutível até que ponto temos uma “democracia”, e se ela será “liberal” ou “capitalista”, parece certo que há uma ossificação do nosso estado mental e capacidade de ver além do que já existe. As razões para tal acontecerem foram, em parte, abordadas no nosso último podcast.
Esta incapacidade de pensar não é algo exclusivamente característico dos nossos tempos, mas sim de todas os regimes que aparentam estar a chegar ao fim da sua vida útil. Alexei Yurchak fala precisamente disto no seu livro Everything was Forever, Until it was No More: The Last Soviet Generation, introduzindo-nos ao conceito de Hipernormalização (que é posteriormente popularizado pelo documentarista Adam Curtis através de uma série documental produzida pela BBC). Assistimos, nos nossos dias, à degradação do sistema, e tomamos isso como algo perfeitamente normal; certamente que não é exigível que ninguém avance com nenhuma alternativa que substitua completamente a totalidade da Máquina (qua sistema), mas a nossa incapacidade de projectar algo diferente é, sem dúvida, revelatória.
Parece que é mesmo só isso que se pode aproveitar do bicho. O seu potencial reside precisamente na sua capacidade revelatória, de nos fazer pensar a fundo sobre o mundo. E se não percebermos que o que está aqui em causa não são questões materiais, então de nada serviu. A máscara caiu, e não há volta a dar. Olhar para a anatomia do bicho, traçar o seu perfil patológico, e não perceber que se trata de uma questão espiritual é uma perda de tempo. E é por aí que tem que começar o realinhar do nosso pensamento, das nossas acções, da nossa vida, e das nossas sociedades. Tudo o que não começar por aí, é uma verdadeira perda de tempo.