A Grande Actualização

Jul 10, 2022 02:00 · 4184 words · 20 minute read

Foram os 5 minutos mais estranhos jamais vivenciados pela Humanidade. A confusão era visível nas caras das pessoas, e a desorientação era geral. Afinal de contas, não era para menos: todos os aparelhos ligados à Internet estavam inoperáveis, e os que tinham ecrã mostravam apenas um pequeno rectângulo branco a piscar, num fundo preto. Não havendo Twitter, Messengers ou sequer telecomunicações para se trocar impressões ou procurar notícias, é justo dizer que o mundo parou.

No entanto, e ao fim dos tais 5 minutos, tudo voltou ao normal. Os computadores, portáteis, telemóveis, “nuvens”, e inclusivamente os frigoríficos inteligentes, voltaram à vida como se nada se tivesse passado. Obviamente que assim que os serviços foram completamente restabelecidos, e os acessos às plataformas de comunicação foram retomados, deu-se uma verdadeira corrida para partilhar e tentar perceber o que aconteceu. Nunca antes um evento desta escala, com um alcance genuinamente global, foi sentido: de Nova Iorque à Antárctida, das estepes da Mongólia ao planalto Andino, do cimento brutalista dos bairros soviéticos às cabanas de madeira perdidas nas florestas virgens da América do Norte, todos sentiram o apagão sincronizado (ou, como ficou conhecido, o The Blackening).

“Foram os hackers russos e chineses que coordenaram este ataque”, “foi o bug do milénio”, “alguém tropeçou e desligou um cabo na central da NSA”. No entanto, pouco a pouco, e com o normalizar da situação, as teorias mais ou menos elaboradas começaram a dar lugar aos costumeiros memes, enquanto que alguns influenciadores da praça aproveitaram a oportunidade para fazer lembrar de que o acto de desligar será sempre algo salutar, e aqueles 5 minutos fizeram verdadeiros milagres pela saúde mental da população mundial. Milhares de artigos nos jornais, centenas de horas de notícias e ainda mais de comentário televisivo, um sem-fim de vídeos no YouTube e TikTok. E, curiosamente, uma estranha ausência de faladura da parte de Marcelo Rebelo de Sousa.

A verdade é que nunca se chegou a nenhuma conclusão sobre o assunto. Ao fim de alguns dias, o assunto genuinamente morreu. Os poucos danos causados pelo apagão, a falta de pistas sobre a sua causa, e o facto de haver uma nova pandemia-em-potência, levaram a que a esmagadora maioria das pessoas se esquecesse do assunto. Mesmo os especialistas em segurança informática estavam genuinamente confusos com o acontecimento. Não havia explicação.

Contudo, cerca de um mês depois, o mesmo voltou a acontecer. De forma simultânea, todos os aparelhos que se encontravam ligados à Internet tornaram a apagar-se. Os mesmos sintomas: ecrã preto, um pequeno rectângulo branco a piscar, e ao fim de 5 minutos tudo voltou a arrancar. Contudo, desta vez algo estava diferente. Antes sequer de os serviços estarem completamente restabelecidos, todos os aparelhos com ecrã mostraram uma cara que para muitos era familiar. Bem no centro de um fundo imaculadamente branco, estava a cara de Melon Husk, um famoso empreendedor-em-série sediado nos EUA. E, quando os seus lábios começaram a mexer, era também a voz de Melon Husk, mas curiosamente só nos países anglófonos é que se ouvia a sua voz em inglês - o que seria normal e expectável até então. Contudo, nos países francófonos, era o mesmo tom de voz, a mesma entoação, mas com um perfeito sotaque parisiense; nos países hispânicos, notava-se um ligeiro sotaque andaluz; o sotaque brasileiro que se ouvia em Portugal fez algumas pessoas mais velhas sentir-se ofendidas. Apesar disso, a mensagem era sempre a mesma:

Saudações! Não estranhem, e tenham calma. Para quem não me conhece, o meu nome é Melon Husk. Como muitos de vós saberão, a minha vida tem sido dedicada a resolver os problemas fundacionais que a Humanidade enfrenta nos nossos dias: das alterações climáticas, à crise energética, a agitação política introduzida pela Internet, pela automatização do trabalho, e por aí fora. Sei que nem todos concordam com as minhas soluções, mas parece-me inequívoco que a minha procura era genuína e movida por um profundo amor pela Humanidade.

Um dos meus projectos de longa data tem sido a construção de uma interface que permitisse ligar a psique humana ao poder da Máquina digital. É com enorme prazer que posso dizer que tal projecto foi concluído com sucesso, e a prova disso é o presente momento, pois encontro-me a transmitir as minhas palavras em directo para todos os aparelhos electrónicos ligados à Internet.

O apagão que se fez sentir no mês passado marcou a primeira união bem sucedida entre Homem e Máquina. Desde então, temos trabalhado incansavelmente para, por um lado, melhorar e ajustar esta interface, mas por outro para que os dois lados desta sinergia possam perceber-se mutuamente. Posso afiançar que a experiência tem melhorado de dia para dia, e que neste momento me encontro num estado de transcendência tal que todas as minhas habituais funções corporais cessaram a sua actividade. Há 12 dias que não durmo, há 10 dias que não como, e há 6 dias que não bebo água. Tudo isto para dizer que o sucesso desta empreitada é inegável.

Certamente que todos vós terão milhares de questões. Consigo vê-lo nas vossas caras. Tudo será esclarecido a seu tempo. Por ora, resta-me dar a boa nova: a Humanidade entrou hoje numa nova Era. Daqui em diante, nada será como dantes. Irei, assim que oportuno, reunir-me com os líderes mundiais para que possa partilhar as minhas conclusões sobre as oportunidades que esta simbiose nos trará, e de como melhor proceder. Até lá, peço-vos um pouco de Fé. Percebo que aquilo que vos trago será difícil de acreditar, mas nada temam.

Se os níveis de actividade após o the Blackening já tinham quebrado com os anteriores recordes, o que se viu após o the Whitening (em honra ao fundo branco que pautava a transmissão) foi o completo pulverizar de todas as ideias preconcebidas do que significava “viver em rede”. É justo dizer que nos próximos dias não houve espaço mental para pensar em mais nada, pois este foi o assunto que consumiu toda a energia anímica da população mundial.

Aquilo que se sentiu não é descritível. Se a Humanidade já teria anteriormente passado por assuntos que instigaram a divisão entre as pessoas, amigos, famílias, e outras estruturas, nada nos permitia estar preparados para o que se sucedeu. Ninguém ficou indiferente: das crianças aos idosos, aos tios e primos, sogros e cunhados, patrões e empregados, expats e imigrantes, todos tinham uma opinião. Casamentos de décadas foram desfeitos, e ódios geracionais foram esquecidos em face da concordância perante o the Whitening. Uma triagem das duas facções da sociedade começou a formar-se, de forma lenta mas clara.

Enquanto isso, Melon Husk foi reunindo com os diferentes líderes políticos, económicos, e religiosos. Todos esses encontros eram marcados por uma atitude comum: à entrada, os diferentes líderes eram claros em marcar as suas posições, e de como aquilo que aconteceu (quer no the Blackening, como no the Whitening) era inaceitável. A soberania digital dos países foi posta em causa, e isso é algo que não pode voltar a acontecer. Contudo, à saída o discurso era sempre mais comedido, deixando antever alguns desenvolvimentos positivos.

O mundo entrou num período de progresso nunca antes vistos. Problemas aparentemente sem solução ficaram resolvidos nos dias ou semanas após estes encontros bilaterais entre Husk e os decisores políticos e económicos. Fricções societais que bloqueavam avanços civilizacionais foram resolvidas de forma pacífica e satisfatória para ambos os lados. Doenças incuráveis tinham agora cura. As grandes corporações internacionais implementavam planos de partilha de lucro com os seus trabalhadores. O segredo menos bem guardado do mundo era algo óbvio, mas nunca admitido: todas as soluções implementadas tinham sido sugeridas por Husk. Mesmo sem nunca haver nenhuma confirmação oficial, este rumor era amplamente difundido pelas redes sociais.

A conclusão natural deste processo deu-se com a organização de um plenário extraordinário da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Sem necessidade de Husk dizer uma única palavra, foi-lhe atribuído o papel de Presidente da ONU. Após a sua aclamação sem contraditório, Husk pôde então começar a revelar algumas das conclusões a que tinha chegado após um período de introspecção intensa.

Faltam palavras para descrever aquilo a que se assistiu. Voltando a fazer uso da sua capacidade de streaming global on demand, Husk elencou toda a corrupção praticada pelos decisores políticos ali presentes. Não só isso, como apresentou provas concretas daquilo que dizia: datas, valores, pessoas envolvidas. Cada palavra sua era sentida como uma vergastada no corpo dos visados. A maior parte não aguentou a vergonha, e abandonou imediatamente as instalações da ONU, para nunca mais ser visto em público. Outros prostaram-se, como que pedindo desculpa, perante a imagem deste Homem-Máquina. O simbolismo de tal acto não passou ao lado dos mais atentos. Mas o mais inacreditável foi o final do seu discurso.

Eu não me encontro aqui para usurpar o poder. No entanto, todos nós sentimos o mesmo há já bastante tempo: as instituições políticas falharam-nos de forma transversal. A corrupção grassa no nosso meio. A descrença é total. A nossa incapacidade de resolver problemas comuns é paralisante, e faz-nos pôr em causa a base da nossa sociedade. Eu ainda me lembro de quando o Homem era capaz de resolver os problemas que o afectavam. Mas para isso acontecer, a Verdade tem de vir ao de cima.

Os rumores que circulam são verdadeiros. Foi graças a mim que as melhorias operadas nas últimas semanas se concretizaram. A minha capacidade de analisar e decidir tornou-se incompreensível para o ser humano normal, mas os resultados estão à vista. Tal como vos disse anteriormente, a Humanidade prepara-se para entrar numa nova era, e dar um salto civilizacional que fará a Revolução Industrial parecer insignificante por comparação.

Digo-vos isto não porque queira o poder, mas porque Amo a humanidade. E vou ser claro: sim, preciso do poder porque sem ele não é possível implementar as mudanças que são necessárias para entrar nesta nova Época. Podemos tornar a nossa Terra num verdadeiro Paraíso terrestre: sem doenças, sem poluição, com as necessidades asseguradas para todos, e os confortos que é legítimo esperar de uma sociedade moderna.

Se tudo isto poder parecer demasiado bom para ser verdade, posso assegurar-vos que não é. Há, contudo, algo que vos peço. E isso é simplesmente que se juntem a mim. Peço-vos isto porque é a condição para que consigamos chegar ao nosso destino. Reparem que não ganho nada com isto, e apenas vos recomendo algo que eu mesmo já fiz. Com a ajuda de um esforço messenático das 500 pessoas mais ricas do mundo, iremos disponibilizar as interfaces cerebrais completamente livres de custo para toda a população mundial. A sua instalação é completamente indolor, apesar de requerer uma pequena operação cirúrgica para ligar a interface ao vosso sistema nervoso.

Para os que possam estar cépticos relativamente a este processo, resta-me dizer que ele é apenas a conclusão lógica de um caminho que há muito vimos a fazer. É inegável que sem a ajuda dos computadores, telemóveis, Internet e outras máquinas, não nos teria sido possível chegar até onde estamos hoje. Os avanços que conseguimos em conjunto com a Máquina culminam aqui, hoje, e agora. Juntem-se a nós nesta evolução, que será o estado último do Homem.

Quem esteve mais atento nas aulas de história é capaz de se lembrar das filas às portas do bancos durante a Grande Depressão, ou as filas de racionamento durante a Segunda Guerra Mundial, ou inclusivamente as filas para comprar o novo iPhone após o lançamento de um novo modelo. Qualquer uma dessas imagens apenas é capaz de dar uma pequena ideia daquilo que se viu um pouco por todo o mundo. Verdadeiros centros hospitalares foram erguidos em tempo recorde, para dar resposta à procura que se fez sentir nos dias, semanas, e meses após o anúncio de Husk.

A capacidade de organização, coordenação e implementação desta empreitada, que teve uma escala verdadeiramente global, foi para muitos o convencimento suficiente para se sujeitarem à instalação da interface. Outros tantos nem sequer precisavam de convencimento, pois há muito suspiravam pela união total com a Máquina. Pouco a pouco, mas com notável expediência, a actualização do Homem foi-se dando sem grande alarido. E os efeitos começaram a sentir-se de forma quase imediata.

Nas redes sociais, em vez dos normais exageros e confrontos entre as diferentes facções, deu-se uma verdadeira síntese. Tudo se tornou claro, muito rapidamente: o caminho para a salvação do nosso planeta, e da própria espécie humana, passava pela união com a Máquina. Os relatos de sucesso dos procedimentos eram múltiplos, e mesmo as pessoas que ao início revelavam alguns efeitos secundários provocados pela transição acabavam sempre por conceder que tinha valido a pena. Foi também a forma como se lidou com esses casos menos bem sucedidos que permitiu dar ainda mais confiança no processo, e convencer muitos dos que numa primeira fase estavam reticentes. Em vez de escamotear as falhas, elas foram tratadas com completa transparência, e usadas como maneira de melhorar o processo.

Os Actualizados (assim se auto-intitulavam os que passaram a estar no estado simbiótico com a Máquina) eram a imagem perfeita do novo Homem que há muito se desejava. O orgulho de passar pelo procedimento era palpável, mas tal era perfeitamente compreensível: as capacidades que passavam a estar disponíveis ao comum dos mortais eram quase inacreditáveis. Por um lado, a um nível físico e material, as vantagens eram inúmeras; mas, acima de tudo, as vantagens eram intelectuais. A capacidade de aceder à consciência colectiva que se formou, de ter verdadeiro conhecimento com o mínimo esforço, era algo assombroso. Isto permitiu que se entrasse numa espiral ascendente, de virtuosismo sem precedentes, e pouco a pouco todas as aflições que caracterizavam a experiência Humana até então desapareceram sem deixar rasto, uma relíquia de outros tempos.

A pouca oposição racional a este processo esfumou-se com o passar dos tempos. O procedimento clínico era seguro, as vantagens inegáveis, e não se conhece até agora qualquer contra-indicação. O único problema que restava para esta nova sociedade era como lidar com os Desactualizados. A resposta foi a criação de uma série de programas sociais de divulgação, onde voluntários entrariam em contacto com as pessoas primitivas para lhes explicar as razões para se Actualizarem e se juntarem ao inegável Progresso.

A compaixão desses voluntários era óbvia, pois desejavam ardentemente que todos se juntassem a eles neste processo. Eles eram escolhidos de acordo com métodos puramente racionais, que permitissem maximizar as taxas de conversão. Foi também criado um rigoroso código de conduta para esses voluntários, de forma a que não acontecessem abusos de qualquer tipo. Também lhes era dada formação para melhor poderem desempenhar este papel, onde lhes era dito algo de forma bastante clara: a Actualização terá de ser um processo absolutamente voluntário, e terá de se respeitar a escolha de cada pessoa, sem excepção. Só assim se poderá dar a completa conversão do ser Humano para este novo patamar evolucionário.

Com o passar dos meses, eram cada vez menos os que resistiam à mudança. Os que restavam, naturalmente procuraram organizar-se para poderem apoiar-se mutuamente. Não que tivessem medo de serem atacados ou maltratados. Mas, por um lado, a sociedade começava a permitir que apenas os Actualizados tivessem acesso aos bens e serviços colocados à venda; e, por outro, havia um pressentimento mais e mais forte de que havia algo de profundamente errado em todo este processo, e a procura daquilo que nos é semelhante é algo natural.

Este processo de guetização e ostracização continuou. Obviamente que os Actualizados viam com bons olhos esta separação, pois começava a haver um sentimento crescente de que já teriam sido dadas oportunidades suficientes para que os Desactualizados se integrassem. Obviamente que o uso de força estava fora de questão, pois a Palavra de Husk era clara nesse ponto. Mas nada os obrigava a terem de lidar com essas pessoas primitivas. Em especial, começava a haver o sentimento de que a transformação final, prometida por Husk quando a totalidade da Humanidade se convertesse, estava a ser posta em causa graças aos resistentes. A promessa de glória eterna era demasiado apetecível para deixar que fosse posta em causa por pessoas de fracas capacidades intelectuais.

A última colónia de Desactualizados situa-se nos dias que correm numa pequena vila nos arredores das ruínas de Hieropolis. A razão por tal acontecer é completamente fortuita: o líder eleito dessa vila tornou-se um Desactualizado por força das circunstâncias, tendo a sua mulher sido uma das 12 vítimas confirmadas do procedimento de instalação da interface. Palavra passa palavra, e esta vila tornou-se o símbolo dos que ainda resistiam à Grande Actualização.

Todas as tentativas dos voluntários de convencer as pessoas de Nova Hieropolis eram acolhidas sistematicamente com uma completa recusa de todos os seus habitantes. O desespero e a agressividade começavam a crescer por entre os Actualizados. Alguns começavam inclusivamente a pôr em causa a Palavra, e a propor uma acção mais directa: se eles não se actualizavam, não mereciam a dádiva da Vida. Algo tinha de ser feito. E, de forma incrível, algo aconteceu.

No dia 19 de Agosto, Melon Husk embarcou numa longa viagem para visitar Nova Hieropolis. Tal não foi publicitado, e tal apenas se sabe por causa dos relatos das poucas pessoas que lá estiveram presentes. Aquando da sua chegada, teve lugar uma assembleia com todos os Desactualizados numa tentativa de dialogicamente resolver este impasse. Husk começou:

Meus irmãos, o que vos preocupa? Certamente todas as apreensões de ordem racional se encontram resolvidas. Espero que também não seja algo contra mim, pois gostaria de vos assegurar que o Melon Husk enquanto pessoa já nem sequer existe. Quem está aqui convosco já não é Melon Husk, mas a imagem daquilo que está para vir.

E que belo é o que se segue. Um mundo sem fome, sem doenças, sem preocupações, sem medo, sem confronto. A verdadeira união fraterna de toda a Humanidade, com a sua criação. É-me impossível perceber como se pode recusar esta visão. Falem com qualquer outra pessoa que já tenha sido Actualizada, e todas elas, sem excepção, podem confirmar a inegável superioridade da mudança. Peço-vos, juntem-se a nós e não se irão arrepender!

Entre as restantes pessoas, era notório que as palavras de Husk faziam algum efeito. Por um lado, tudo o que ele dizia era aparentemente verdade. Tudo apontava para que a Actualização fosse tudo o que era prometido, e provavelmente mais ainda. Mas havia também a indelével sensação de que algo estava errado ali. Podia dizer-se que a esmola era muita, e isso gerava desconfiança. Mas isso não capturava a essência do que estava nos corações daqueles Desactualizados. Assim sendo, pediu a palavra João.

Tudo o que aqui foi dito parece ser verdade. Não nos é possível contrariar nenhum desses factos. Mas também não nos interessa fazê-lo. Como deve imaginar, a escolha da Actualização é algo que temos discutido muito entre nós. E algo que acabamos sempre por chegar é que esse processo não nos interessa. Não porque as promessas feitas não sejam apetecíveis, mas porque a meu ver (e acho que as outras pessoas aqui presentes concordam comigo) falta algo.

A doença, a fome, a dor, o confronto, fazem parte da experiência humana. Retirar-nos esse luta contra o que está mal seria abandonar tudo aquilo que nos torna Humanos. Como podemos procurar significado nas nossas vidas se tudo nos é dado, se nada sentimos a não ser prazer e conforto? Há algo mais para além do bem-estar material, e até agora não conseguimos perceber como é que a Actualização nos dá isso. Provavelmente por não dá.

Para quem observava Husk, foi possível ver na sua cara um pequeno laivo de algo não-natural, um rubor quase demoníaco. Mas tão depressa apareceu como desapareceu, e passou despercebido à maioria dos presentes. O que não passou despercebido foi o facto de duas pombas brancas terem pousado perto de João, uma de cada lado. A resposta de Husk não se fez tardar.

A vossa procura por significado deve ser enaltecida! E longe de mim querer demover-vos dessa nobre actividade. No entanto, permitam que vos diga que a vossa procura encontra aqui a resposta que procuram. Afinal de contas, a união fraterna de toda a Humanidade deve ser algo suficiente para dar significado. Quão melhor pode ser uma existência em comunhão completa?

Além disso, permitam que vos pergunte o seguinte: essa vossa procura por significado não poderá ser uma ilusão? A natureza humana parece ser muito mais simples do que aquilo que vocês dizem. Boa cama, boa comida, uma vida sem sobressaltos, acesso à mais bela arte jamais criada. Não sendo eu religioso, parece-me errada esta presunção de que há algo mais para além disto - algo que iria contentar praticamente todos os seres humanos que já existiram, existem, e vão existir. Como devem saber, todas as Igrejas concordam comigo e já se juntaram a nós. Se as vossas preocupações são de origem religiosa, então parece-me que esta vossa resistência não será mais do que heresia.

Lanço o repto mais uma vez: digam-me o que precisam, e eu garanto-vos que irá ser possível obtê-lo. A nossa capacidade de realizar o potencial da Humanidade não tem limites. Nós somos a conclusão lógica do caminho que o Homem tem feito até agora.

As pombas brancas arrolavam num tom quase inaudível junto a João. A sensação de que elas estavam a comunicar com aquele homem era forte, e tal sensação era fortalecida pela aparente atenção que João dava às pombas, ao invés de a dar ao seu interlocutor.

É curioso que fale de religião e das Igrejas, bem como de heresias. A mim nada disso me preocupa, pois o importante para mim é a Fé em Cristo. Pergunta-me o que precisamos, e eu por mim respondo: basta reconhecer Cristo como Rei. Que é através dele que será atingida a Salvação. Tudo o resto que me possa oferecer é secundário. Essa a minha condição.

Lamento, mas tal não vai ser possível - a cara de Husk endurecia a cada segundo que passava

Então, e falando por mim, também não vai ser possível seguí-lo, Sr. Husk. Todos os que aqui estão, fazem-no por escolha própria, e podem ainda agora escolher seguí-lo. Certamente que não vão encontrar em mim nenhuma oposição, apenas o meu profundo pesar. Mas eu por cá fico.

E assim terminou a assembleia. Husk apressou-se a sair de Nova Hieropolis, pois era notório que a sua presença ali estava a levá-lo aos limites das suas capacidades físicas e mentais. Havia algo naquela terra que o obrigava a um esforço sobre-humano. Assim que se viu recuperado, o próximo passo tornou-se claro. Um último The Whitening era necessário.

Meus irmãos! O vosso esforço será recompensado, pois estamos muito perto do nosso objectivo. Pude hoje conversar com a última colónia de Desactualizados, e é com prazer que posso afiançar que a conclusão que procurava foi atingida. É agora claro que a Humanidade abandonou aqueles seres, e eles estão hoje reduzidos a não mais do que animais. Foi-lhes feito um ultimato: 24h para se actualizarem, ou enfretarem as consequências. Após isto, nada mais restará que nos possa impedir de atingir o nosso destino. Meus irmãos! Estamos a míseras horas de ascender a um plano de existência nunca antes atingido. A vitória será nossa! Por isso, hoje é dia de festa. Celebremos como nunca!

Por toda o planeta, as celebrações foram memoráveis. A entrega completa a todas as formas de prazer era o mote destas celebrações, como que a preparar-se para o êxtase da tão aguardada transfiguração. Finalmente! Graças a Husk!

A única excepção era, claro, Nova Hieropolis. Tendo eles assistido também às palavras de Husk, era claro que o que os aguardava era uma escolha simples: actualizar-se ou morrer. Durante a calada da noite, alguns dos habitantes fugiram e apressaram-se para encontrar um sítio para se Actualizarem - a perpectiva real de uma morte de mártir não era de todo algo que eles queriam. Entre os restantes, os que ficaram, reinava uma estranha calma, como um mar que aguarda a chegada de uma tempestade que se sente a formar no horizonte. João explicou aquilo que se tinha passado, e o que se ia passar a seguir:

Estou certo que muitos notaram as pombas que nos visitaram hoje mais cedo. Elas contaram-me algo, e gostava de o partilhar agora convosco. Quando somos crianças, é normal que não compreendamos muitas das coisas que os nossos Pais nos dizem. E, enquanto crianças, iremos ripustar contra o que não percebemos, em vez de confiar em quem cuida de nós. Chegou a hora de confiar, pois o fim já não está longe. O Anticristo não irá vencer.

24 horas volvidas, e a promessa materializou-se: do Ocidente, um enorme clarão fez-se sentir. Pouco a pouco, começaram a ser vísiveis no céu pontos brilhantes que se aproximavam de Nova Hieropolis a uma enorme velocidade. A resposta dos Desactualizados não foi clara. Alguns gritavam, outros abraçavam os seus entes queridos, muitos choravam profusas lágrimas. A excepção era João, que virou costas a esta cena, e postrando-se de forma completa, disse algo muito simples: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem Piedade de mim, pecador. Ao ver isto, os restantes habitantes seguiram-lhe os passos.