O Horror ao Espaço Vazio

Jun 20, 2021 18:25 · 1036 words · 5 minute read

A expressão latina horror vacui permite-nos perceber bem uma das características mais pervasiva da Modernidade. O horror ao espaço vazio, que se fosse uma condição médica poderia ser chamada kenophobia, sendo algo que estava presente nas culturas antigas (daí até terem um nome para tal fenómeno), não se revela como premissa fundamental do espírito até o século XVII e XVIII. Pelo contrário, quanto mais recuamos no tempo, mais podemos ver que essa aflição com a existência do nada (que tem de ser diferenciada da inexistência) era tida como algo perverso; pelo contrário, valorizavam-se as não-existências: as pausas na fala, os espaços negativos na pintura, o espaçamento entre as casas, todos eles tidos como condutores da existência do Bem. Só estes espaços com “nada” nos permitem realmente apreciar o restante, e chamam a atenção para as partes realmente impotentes da realidade. E se há coisa que a Modernidade se tornou especialista, foi em preencher esse vazio.

Olhar para as cidades e para o “urbanismo” parece ser a maneira mais fácil para as nossas sensibilidades modernas perceberem isso: não há espaços vazios nas cidades, e quando os há, são mau sinal. O espaço vazio dentro de uma cidade é representado por casas desabitadas/em ruína, locais de espaço negativo (os cantos internos feitos por edifícios são especialmente notórios aqui), ruelas sem iluminação, sítios silenciosos. becos sem saída. A cidade opõe-se à existência destes espaços, pois são concebidos como “desperdício”, locais onde o Mal pode acontecer, e o mais provável é cheirarem ao mijo de algum (ou vários) boémios que se aliviaram ali durante a noite anterior. Inclusivamente, não é estranho ouvir lamentos de que certas zonas ainda arborizadas (nunca silvestres, claro, porque isso é o maior crime dentro da cidade) seriam muito melhor aproveitadas se destinadas à habitação. Aquilo que a nós nos parece como a existência do nada (apesar de nunca o ser) não é compatível com a nossa psique: temos de encher os nossos espaços com bens materiais, temos de encher o nosso tempo com estar ocupados (leia-se: entretidos), o silêncio preenchido com pessoas a falar ao telemóvel, música ou outros ruídos de origem humana, e a existência de tempos mortos é o pecado cardinal da modernidade (se o tempo está morto, claro que algo está mal!).

Mas nem sempre foi assim. Apesar de, como já referido, os antigos sofrerem um pouco deste mal (Aristóteles e Plato recusavam a ideia de que havia realmente espaço vazio, fisicamente), tal era, por um lado, uma ideia completamente restrita aos círculos pensantes da sociedade, e era amplamente contrariada por mutiplas facetas da comunidade. Isto é algo que se pode ver, por exemplo, na pintura. E aqui seria interessante analisar dois exemplos distintos, mas que convergem para o mesmo: a existência do espaço vazio na pintura japonesa, e a iconografia cristã ambos usam o espaço vazio para simbolizar algo imaterial, que não se vê, mas cuja presença não pode ser ignorada para compreender a totalidade da sua essência, bem como para fazer realçar as restantes partes que constituem as obras.

O princípio do yohaku no bi (a beleza do branco remanescente) foi fundamental na pintura japonesa medieval. Inspirando-se no princípio budista do mu (ausência, não existência), era frequente conceber a pintura não como uma arte de desenhar, mas sim de fazer o que não era pintado um dos pontos fulcrais da Arte. Tal fica demais evidente se olharmos para o Shōrin-zu byōbu, de Hasegawa Tōhaku. É um detalhe deste quadro que dá a imagem a este postal, e nele podemos apreender o que esse princípio nos pode dar: mais do que os pinheiros, é a falta de tudo o resto que nos diz tudo o que há para dizer nesta imagem; é a falta de detalhe em partes do desenho, ou mesmo a ausência completa de desenho noutras partes, que nos dá a noção de perspectiva, o sentimento que o quadro pretende transmitir, e a ideia de que é ali, entre as árvores, que tiramos a significação do espaço vazio enquanto potencial de realização do mistério que nos está a tentar ser revelado. É lá que os olhos descansam, e nos permitem pensar sobre aquilo que estamos a ver. Este princípio da existência do espaço vazio acaba por ser transversal na realização da estética japonesa antiga, encontrando-se na caligrafia, nas artes marciais, na decoração, ou mesmo na própria construção.

Na iconografia cristã, a ausência é por norma usada para significar a presença de Cristo. No exemplo acima, representativo de um ícone que celebra o Pentecostes, podemos ver os doze apóstolos sentados num semi-círculo, sendo que exactamente no meio deles se encontra um espaço em vazio. A Sua presença, mesmo invisível, não pode ser ignorada; tal como Cristo nos diz antes da sua Ascensão, “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mateus 28:20). A Igreja não poderá estar completa sem Cristo no seu centro, e mesmo que o lugar esteja fisicamente vago, a sua Graça permeia toda a existência, mesmo que muitas vezes tal não seja materialmente apreensível. Nessa acepção de Cristo, enquanto Senhor, não seria possível representá-lo de outra maneira. Aqui, o espaço negativo da sua ausência material tem um significado exactamente oposto àquilo que seria expectável, para a nossa moderna visão. Mas é essa ausência que nos ajuda a perceber o Seu todo, e sem ela estaríamos remetidos a uma crude representação iconográfica de Cristo, que por muito boa que seja, nunca será capaz de simbolizar nem o necessário nem o suficiente para ilustrar este ícone.

E isto ajuda-nos a perceber uma das muitas insuficiências que a mundividência moderna tem. A incapacidade de ver para além daquilo que o olho capta; a realidade acaba no momento em que os sentidos deixam de poder captar o que existe para além do nosso corpo, e se algo não é passível de ser sentido ou captado, então pura e simplesmente não existe. A pobreza metafísica desta perspectiva é gritante, mas nós escolhemos a surdez em vez de mudar a nossa perspectiva, tal como escolhemos fechar os olhos aos milagres que todos os dias no rodeiam, e fechar o nosso espírito à infinita Graça do Senhor. Mas, a boa notícia, é que é uma escolha, e não dependemos de ninguém para mudar.