And God said, Let us make man in our image, after our likeness: and let them have dominion over the fish of the sea, and over the fowl of the air, and over the cattle, and over all the earth, and over every creeping thing that creepeth upon the earth (Genesis 1:26)
We have come from God, and inevitably the myths woven by us, though they contain error, will also reflect a splintered fragment of the true light, the eternal truth that is with God. Indeed only by myth-making, only by becoming ‘sub-creator’ and inventing stories, can Man aspire to the state of perfection that he knew before the Fall. (J.R.R. Tolkien)
O Mito da Criação é das peças mais importantes de qualquer cultura. Todo a pessoa humana sente intuitivamente a importância de perceber de onde é que veio (e essa intuição é um fortíssimo símbolo da sua importância), e não é possível conceber uma cultura sem saber qual a semente que dá origem a tudo o que daí se segue - e aqui recorde-se a origem da palavra cultura, que partilha a raiz com “cultivo”, algo fácil de perceber para quem fale uma língua latina. É extremamente difícil olhar para a totalidade da Criação e não ficar positivamente encantado, e explicar esse milagre torna-se uma das tarefas fundamentais de qualquer cultura. Tem sido assim em toda a história e pré-história do ser humano, e parece que a única excepção de nota é mesmo a modernidade - no entanto, esta primeira impressão poderá ser enganosa; já lá iremos.
Quando falamos no encantamento da Criação, podíamos estar a falar de um milhar de coisas diferentes. Por um lado, há o sentimento da mais pura maravilha ao perceber o quão harmoniosa e ordeira é a Criação; mesmo que não a consigamos apreender racionalmente, é impossível negar a sua qualidade. Podemos também falar do efeito que a Criação tem sobre nós, ao relembrar-nos (ou, pelo menos, assim devia ser) que nós somos uma parte de um todo, e que apesar de nos ter sido dado o domínio sobre ela, tal domínio é mais responsabilidade do que direito — apesar de, claro está, ser ambos em simultâneo. É ainda possível pensar nos princípios esotéricos associados à Criação, pois o mundo não poderá ser reduzido a uma série de princípios mecânicos e inertes, mas conterá em si mesmo toda uma realidade muito para além do material e à quantidade. Todas estas interpretações estarão, em certa medida, correctas. Afinal de contas, todas elas apontam para uma parte particular do Todo, colocando o ênfase nesse particular, algo que não será necessariamente errado. O erro está em achar que esse particular é representativo da totalidade.
Perceber a mitologia de uma dada sociedade é indispensável para perceber a sociedade em si. Como dissemos acima, o Mito da Criação assume um papel fulcral, pois é ele que em parte dá o propósito às suas gentes. O livro do Génesis é especialmente claro nesse aspecto, e já aludimos, em parte, às suas implicações para os que escolhem acreditar na Palavra. No entanto, é óbvio que esse não é o Mito que dá ânimo à sociedade moderna. E se aqui podemos falar do Big Bang, da Teoria da Evolução, da Crença no Progresso, ou de outros mitos que compõe o nosso Mito da Criação (porque, lá está, a modernidade também tem os seus mitos), para o efeito do presente texto acho mais interessante focar no efeito que este mito tem na nossa mundividência.
Com a proclamada morte de Deus do pós-Iluminismo, a sociedade Ocidental não deixou de ter mitos; simplesmente substituiu-os por outros. A Criação deixou de ser creatio ex nihilo, para passar a ser uma característica permanente da Existência (o que há é o que sempre houve, simplesmente num estado material diferente, de singularidade, mas essencialmente igual a tudo o que daí se seguiu). O Homem não é feito à imagem e semelhança de Deus, mas foi moldado por um processo de milhões de anos de evolução. Mas o impacto mais importante para a nossa sociedade não é o mito em si, mas o facto de eles terem passado a ser entendidos de forma literal. Este literalismo, que também passou a assolar certas partes do Cristianismo, tornou-se prevalecente na mitologia da sociedade moderna. Literalmente, éramos símios e a certo ponto deixamos de os ser; literalmente, o Universo explodiu e a matéria começou a expandir-se em todas as direcções ocupando o espaço outrora vazio; literalmente, estamos agora melhor do que estávamos no passado graças aos avanços providenciados pela técnica e engenho Humano.
E é este literalismo que torna os mitos modernos tão disfuncionais. Porque se antigamente os mitos serviam para dar um propósito (isto é o que deve acontecer), o mito moderno é essencialmente narrativo (isto foi o que aconteceu). Não fazem referência a nenhum princípio fundacional, não ligam o Homem a algo maior do que ele; simplesmente colocam o Homem no centro de um Universo inerte e caótico, e cuja aparente ordem é meramente o produto de uma incrível coincidência probabilística. E aqui percebe-se a gravidade do problema. Não é por acaso que um dos conselhos que mais frequentemente se dá aos jovens hoje em dia é o “Tu podes ser aquilo que tu quiseres”; quando a Criação não está ancorada num princípio, então abre-se um verdadeiro oceano de possibilidades. E aqui, o resultado mais provável é o afogamento. E isto é grave porque o mais provável é levar à nossa ruína.
O exemplo acabado daquilo que falamos pode ser visto no post feito há alguns dias, Diabolizar a Agricultura. Como a Criação não tem nenhum simbolismo, deixamo-nos encantar com a criação humana: em vez de ficarmos rendidos à beleza da harmonia da Natureza, ficamos genuinamente enfeitiçados (um mau encantamento) com aquilo que é criado por nós, para nós. Em vez de vermos o milagre inerente ao brotar das novas plantas, o seu crescimento, e todo o ciclo vegetativo das plantas, vemos apenas o processo quantitativo do mecanismo que não conhecemos mas achamos que sim. Preferimos a grande maquinaria e a monocultura, o Whatsapp e o smartphone, a quantidade em estado bruto. Tudo porque estamos completamente perdidos espiritualmente, e conscientemente rejeitamos os princípios salutares de antigamente, para os substituir pela crua e estéril cientificidade.
O ser Humano não é diferente daquilo que era há alguns milénios atrás. Mesmo que aceitemos as premissas da modernidade, não evoluímos ao ponto de termos deixado de precisar de mitos para nos guiar. E quando os mitos que nos guiam são, na melhor das hipóteses, insuficientes, os resultados são os que estão à vista: problemas de foro mental, o domínio da acédia, valores que se perdem e são substituídos pelo seu contrário, o verdadeiro mundo de pernas para o ar. Em vez de ascendermos para mais perto de Deus, só nos afundamos cada vez mais no lamaçal onde chafurdamos.