A empresa, enquanto pessoa jurídica geralmente usada para exercer uma limitação de responsabilidade, é provavelmente uma das marcas mais distintivas da modernidade. A sua presença é tão comum que até extravasa a sua associação aos sistemas de economia de mercado, estando a sua figura contemplada em sistemas socialistas. Esta preponderância da figura da empresa é um fortíssimo indicador da sua importância no nosso mundo.
Contudo, a pergunta impõe-se: porque é que existem empresas? Muitas respostas foram avançadas ao longo dos anos, dando origem a uma área de estudo que se designa como “teoria da empresa”. Esta área é tão importante que um dos artigos fundacionais da área foi uma das principais razões para galardoar o seu autor com um prémio Nobel da Economia. Mas todas as respostas que são dadas procuram apenas escamotear a contradição inerente entre a economia de mercado e a existência da empresa.
Afinal de contas, e à primeira vista, há algo genuinamente estranho na presença de uma empresa numa economia de mercado: a organização interna de uma empresa é a antítese daquilo que é preconizado como o ideal capitalista; há uma hierarquia que gere a alocação de recursos de acordo com um dado plano e de forma centralizada, e não recorrendo a um sistema de preços que coordenaria essa mesma alocação. A aplicação do princípio da alocação eficiente dos recursos através de um mecanismo de preços faria prever que as relações económicas entre os diferentes agentes seriam todas realizadas numa base de contratos pontuais, entre profissionais liberais que entrariam numa relação económica que não obedeceria à lógica de empregado-empregador.
Este confronto entre a realidade e a teoria não augura nada de bom. Não porque a teoria (neste caso, a superioridade do mecanismo de preços enquanto forma de alocação de recursos) esteja certa ou errada, mas porque a necessidade de justificar a desconexão existente, e de a legitimar com a atribuição de um dos principais prémios na área, aponta para a significância do assunto. E sim, o assunto é bastante importante.
Mas se as respostas apontadas pelos estudiosos da área não são satisfatórias, qual será então a razão que explica a existência da empresa? A nosso ver, a resposta a esta pergunta de ordem ontológica já foi dada neste texto: é a limitação da responsabilidade que se assume como a verdadeira razão para que a empresa exista. Este artífice legal é a razão de ser, e o que permite que a empresa se torne um mecanismo fundamental para o desenvolvimento da modernidade.
A ideia da limitação da responsabilidade é algo bastante simples de perceber: se para fundar uma empresa é exigido que existam sócios (que poderão ser “pessoas morais” ou “pessoas jurídicas” - isto é, pessoas ou outras empresas), e que estes sócios contribuem, à altura da sua fundação, com capital que irá servir para dar forma e permitir responder às responsabilidades da empresa. O significado da existência deste capital social é precisamente quantificar o limite da responsabilidade da empresa: em caso de falência e posterior liquidação da empresa, esta quantia representa até que ponto os sócios poderão ser responsabilizados pelas dívidas da empresa.
Isto é algo que marca uma vincada diferença entre o estatuto da empresa e da “pessoa moral”. Mesmo num contexto económico de trocas comerciais, o facto de ser uma pessoa ou uma empresa a assumir uma responsabilidade (no inglês, liability) torna a situação substancialmente diferente: enquanto que uma pessoa poderá ver os seus bens pessoais arrestados, independentemente de estarem ou não envolvidos no processo económico (por não haver separação entre a função económica e a função pessoal), a empresa tem o seu âmbito de responsabilização estritamente definido: apenas os seus activos, a juntar ao capital social, poderão ser usados para responder às ditas responsabilidades.
Torna-se então claro algo que à primeira vista não o era: sendo óbvio que as empresas, apesar de pessoas jurídicas, não possuem capacidade de actuação (por não possuírem Vontade), terão de existir pessoas morais que dotem as empresas da capacidade de decidir e actuar no espaço económico. Menos óbvio, mas mesmo assim incontestável, será que essas pessoa que tomam decisões num âmbito empresarial não as tomam como se estivessem a tomar uma decisão para si mesmas. Mesmo quando a decisão de um gestor (enquanto membro do órgão de gestão de uma empresa) se revela danosa para terceiros, dificilmente o gestor se tornará responsável pelos danos causados, sendo então a empresa chamada a responder. E claro que poderá aqui ser argumentado que existem mecanismos que permitem controlar e estabelecer limites a este desligamento da responsabilidade, tal como é argumentado que as democracias constitucionais estabelecem limites e controlos (checks and balances) ao poder do Estado. Mas, num caso tal como no outro, rapidamente se constata o redondo falhanço desses mecanismos.
O que muda então aqui? A possibilidade de assumir riscos e não assumir responsabilidade pelos efeitos negativos eventualmente criados é a definição do risco moral (do inglês moral hazard). Mas como se isto não fosse suficiente, há também aqui um efeito expansionário que advém do acumular de decisões que, apesar do seu efeito nominalmente positivo (porque resultaram), colocam sob pressão a própria sociedade. E isto não é um defeito, mas sim feitio do próprio sistema - é suposto ser assim.
O título deste texto pretende apontar para o culminar deste texto. Queríamos estudar a relação entre a empresa, a Máquina, e a Vontade: sendo óbvio que nem a Máquina nem a empresa têm Vontade propriamente entendida (no sentido de não conseguirem, sozinhas, agir sobre o Mundo - algo que é reservado ao Homem), a empresa torna-se o veículo para que a Máquina possa explanar toda a sua força destrutiva sobre a Criação. É, realmente, o casamento perfeito, juntando-se a fome à vontade de comer: por um lado, temos o Homem caído, susceptível às tentações como nunca antes, e iludido pelo progresso material proporcionado pela Máquina; por outro lado, a Máquina precisava de um meio para começar o seu processo de expansão e atingir o domínio sobre a matéria. A nossa tese é que é precisamente a empresa que serve como esse veículo.
Havendo a limitação da responsabilidade, a empresa permite que riscos que seriam impensáveis tomar a nível individual sejam realizáveis. Esses riscos, por norma, são inerentes à tentativa de novos métodos experimentais, algo necessário para que novas técnicas sejam validadas - por alguma razão é que a ciência moderna (ênfase no moderna) é experimental. Sem a possibilidade de dissociar a tomada de risco das suas consequências o progresso da Máquina seria de tal modo lento que provavelmente se tornaria impraticável; a vitória da Máquina não depende só da sua capacidade de mudar o mundo material, mas também da crença que os Homens têm nela - e essa crença será tão mais forte quão mais rapidamente a Máquina se expandir.
Outro dos aspectos que permite perceber a relação entre os conceitos que queríamos aqui estudar é a noção de responsabilidade social corporativa, que procura perceber as responsabilidades que uma empresa tem na sua relação com a sociedade em geral. A resposta clássica, e que ainda hoje é aceite como válida em alguns sectores da sociedade, foi-nos dada em meados do século passado por Milton Friedman (mais um Nobel da Economia); essa resposta oferece uma visão estrita da função da empresa na sociedade: ela serve apenas para a realização de lucros, e tudo o que extravase esta função deverá ser considerado como carolice.
Lendo o artigo de Milton Friedman, é curioso ver como muito do que aqui falamos é abordado; logo a abrir, é-nos dito claramente “Só as pessoas têm responsabilidades”. Esta visão instrumental da empresa contrasta com a visão moderna que efectivamente domina hoje em dia, onde uma empresa tem responsabilidades que extravasam, e muito, a realização do lucro. Tal é visto não só nas suas acções, de apoio às causas sociais fracturantes, mas também como na própria narrativa que é construída pelas administrações responsáveis pelas grandes corporações da economia mundial.
O que está em causa é a fusão entre a moralidade, a empresa, e a economia de mercado. E se isto pode, à primeira vista, parecer algo positivo (pois gostaríamos que os responsáveis dessas empresas tomassem decisões que fossem morais), a verdade parece apontar para que exista uma corrupção proveniente desta mistura: não só a empresa é corrompida e passa a ser usada para fins que muito para além do estritamente económico (o que permite que a Máquina ganhe assim controlo também sobre a Moral), como a própria Moral é corrompida pela lógica empresarial. E, no entretanto, chegamos ao ridículo de ter empresas (através das suas administrações a promover abertamente causas menos próprias, a admitir que essas causas são mais importantes que a obtenção do lucro, e ainda assim a obterem a aprovação dos accionistas.
Entramos assim num triste ciclo vicioso, que é só mais um passo para o fim dos tempos. Infelizmente, não se vê grande solução possível, devido à enorme confusão conceptual que rodeia este assunto. Certamente que a solução não passará pela política, nem tampouco por uma reformulação do quadro jurídico que dá corpo à empresa. Mas também parece claro que não podemos ignorar que a presença da empresa na nossa sociedade é algo que está para ficar, e salvo um colapso societal de proporções há muito não experimentado, teremos de lidar com ela.