Da última vez que por cá dissemos algo, falamos da empresa em abstracto, e de como a limitação da responsabilidade pode ser uma ferramenta extremamente importante para que que a máquina possa explanar o seu pendor maléfico no mundo. No entanto, sentimos que faltou alguma concretização para que se realmente perceba o alcance daquilo que escrevemos.
Curiosamente (ou não - as sincronicidades não devem ser ignoradas) travamos conhecimento com alguns casos muito interessantes, e que exemplificam bastante bem o desastre que a empresa moderna é capaz de criar nos nosso dias. Por empresa moderna estamos a referir-nos aos grandes conglomerados multinacionais, presentes em vários países e continentes, com um verdadeiro alcance mundial - algo já de si bastante preocupante. Este é, afinal de contas, o sonho destas empresas: a expansão sem limites da actividade económica, que procura subsumir dentro de si todos os restantes princípios e valores.
Os exemplos que encontramos têm algo em comum, uma característica partilhada pela grande maioria dessas empresas: tendo os seus escritórios de shared services espalhados pelo mundo, é bastante frequente terem a base dos seus processos de tratamento contabilístico instalada num país de terceiro mundo, em especial no sudoeste asiático. Isto quer dizer que as facturas dos diferentes fornecedores serão todas concentradas para tratamento inicial num desses países, inseridas no sistema de ERP (isto é, passadas para formato digital) e posteriormente tratadas por pessoas mais competentes num dos restantes países (normalmente, países de segundo mundo como Portugal).
Imaginem então esta situação: o fornecedor da representação Checa da empresa multinacional emite uma factura, e essa factura, que naturalmente estará em checo, é enviada para um service center na Índia. Lá, um indiano que não sabe falar checo, pega na factura e insere-a no sistema - NIF do fornecedor, conta do cliente, valor facturado, IVAs, prazos de pagamento, etc. Claro que um bom profissional, com brio, mesmo que não saiba falar a língua rapidamente consegue perceber e encontrar os valores em questão e inseri-los no sistema. Mas sabemos que estas grandes empresas, quando recrutam para estas posições, estão mais preocupadas com o gasto do que com a capacidade do trabalhador (e voltaremos a isto mais tarde).
É a tempestade perfeita. Um dos casos particulares, e pelos vistos bastante frequentes, que ocorrem nestas configurações empresariais tem que ver com a duplicação de documentos e pagamentos dentro do sistema: uma factura introduzida mais do que uma vez implica que o mesmo pagamento acabe por ser duplicado - ou pior. Claro que, eventualmente, alguma pessoa mais qualificada acabará por apanhar estas situações e corrigir; não é muito difícil olhar para a conta corrente de um dado fornecedor e observar que certas facturas e pagamentos estão duplicados. Inicia-se então um processo de correcção da situação, através da emissão de notas de crédito e pedidos de devolução do dinheiro a mais transferido ou acerto de contas nas próximas facturas.
Agora, perceba-se que esta situação não é particularmente grave, no sentido em que erros acontecem sempre, e que é bastante improvável que estes erros passem despercebidos. No entanto, estão aqui implícitas duas coisas com impacto financeiro: por um lado, a grande empresa multinacional está, para todos os efeitos, a financiar os seus fornecedores durante o tempo entre a ocorrência do erro e a sua correcção; por outro, há também todo o impacto de ter que existir uma estrutura de controlo para verificar e corrigir os problemas que vão surgindo. Quanto mais complexa for a operação da empresa, mais erros vão existir e mais significativo vai ser o impacto destes erros.
Uma outra situação prende-se com a complexidade fiscal dos países; cada país terá as suas peculiaridades no que toca ao tratamento dos documentos contabilísticos, e sabe-se que se há coisa que os Estados modernos não perdoam são falhas ou desvios da norma contabilística e cumprimento das obrigações fiscais. Isto adiciona mais uma camada de potenciais problemas, e também nos foi transmitido que tais falhas acontecem com alguma frequência; é expectável que quem trabalha na parte de introdução dos dados no sistema não ter conhecimento e não ter recebido formação específica para evitar tais erros. Aqui o impacto torna-se ainda mais visível, pois as multas e coimas de não cumprimento podem cifrar-se na casa dos milhões de euros.
Tudo somado, parece óbvio que há aqui um impacto financeiro nas contas da empresa que é substancial. Mesmo nestas grandes empresas, qualquer gestor que conseguir implementar medidas para evitar os milhões de euros que estes erros representam seria rapidamente promovido. E não deixa de ser curioso que a criação destes shared service centers, e a sua deslocalização para o offshore, foi justificada numa perspectiva de centralizar os recursos e assim criar sinergias que permitiriam poupar custos. E no entanto, como podemos ver, há uma grande possibilidade de os custos introduzidos com estas medidas serem superiores às poupanças.
Como justificar então que estas empresas, orientadas pela obtenção do lucro, insistam em práticas que aparentam ser contraproducentes para o fim que lhes é destinado? Já anteriormente apontamos que as empresas modernas, e em particular as administrações destas grandes empresas, procuram assumir responsabilidades que extravasam a visão clássica da procura de lucro. Mas estes casos em concreto parecem revelar algo mais pérfido: quando a responsabilidade social e a obtenção do lucro entram em confronto, começa a ser cada vez mais normal haver uma escolha pelo primeiro em detrimento do segundo.
Os de que entre nós conhecem o ideário liberal clássico são capazes de oferecer uma pronta resolução para este problema: o mercado tomará conta do problema, pois as empresas que não forem lucrativas irão ser empurradas para a falência. No entanto, o modo de funcionamento do mercado não será tão binário assim: uma empresa poderá ser lucrativa mesmo que nem todas as suas práticas serem orientadas para o lucro; e isso é precisamente o que se assiste hoje em dia, ficando mesmo nós com a sensação de que as práticas lucrativas assumem uma posição secundária e de mero suporte às restantes actividades, ditas sociais, das empresas.
Qual será então o objectivo a atingir? Se a criação destes serviços partilhados e da sua deslocalização para países de segundo e terceiro mundo foi coberto sob um mantra de diminuir cash flows e tornar as operações mais ágeis e confiáveis através da centralização, tal não subsiste a um escrutínio que nem sequer é muito apertado. Terá de haver alguma outra razão. No entanto, se pensarmos na empresa moderna como uma extensão da Máquina, tudo se torna relativamente mais claro.
A verdadeira razão para a empresa moderna ir para um país de terceiro mundo não tem que ver com os salários mais baixos que lá são praticados, mas sim um propósito duplo: por um lado, permite introduzir as pessoas nesses países mais atrasados às maravilhas do trabalho moderno, no seu esplendor alienante; por outro, permite que exista uma interdependência entre diferentes países e culturas, que passarão a estar mais ou menos ligados através das diferentes redes que estes gigantes conglomerados formam - não somos de todos estranhos às ocorrências destas empresas, depois de inculcadas nos países terceiromundistas, fazerem lobbying para que certas leis e costumes “ocidentais” sejam implementados.
A verdadeira razão para a empresa moderna colocar pessoas Holandesas, a trabalhar em Singapura, para o mercado Chinês, nada tem que ver com as sinergias criadas pela multiculturalidade, mas sim para que a habituação do Estranho tome lugar, e para o desenraizamento das pessoas da sua terra e dos seus. A destruição das instituições intermédias e das tradições locais (a ser substituídas por celebrações mundiais como o “dia mundial do café” ou o “thank god it’s friday”) é o que mais convém à Máquina.
A Microsoft ficou conhecida pelo uso interno de uma frase que descrevia os seus processos no que toca à adopção de certas tecnologias: embrace, extend, and extinguish. Como a realidade é fractal, tal frase também descreve as acções destas empresas modernas a um outro nível: primeiro incluem, depois ampliam, e por fim extinguem. Todas as conversas de como as diferenças nos tornam mais fortes, mas que depois têm de ser controladas por rígidos procedimentos internos (que chegam a incluir as mais perversas invasões de privacidade dos seus trabalhadores); ou de como a cultura interna é em tudo semelhante a uma grande família feliz, mas à boa imagem da família protestante, os filhos levam um chuto no rabo mal atinjam a maioridade.
Não nos devemos iludir: estas empresas modernas são agentes do Mal. E quanto mais cedo desaparecerem, melhor. Cabe-nos a nós imaginar um mundo sem elas - e nem sequer é assim tão difícil.