O mundo comido

Feb 27, 2022 13:00 · 838 words · 4 minute read

Learn to discern the snares of the enemy and do not listen to him. Abbot Nikon (Vorobiev), Letters to Spiritual Children p.109

You will hear of wars and rumors of wars, but see to it that you are not alarmed. Such things must happen, but the end is still to come. Matthew 24:6

Começamos por pedir perdão. Um dos defeitos que nos caracteriza é a tentativa de usar o humor como maneira de aligeirar um problema. Sabemos que os assuntos sérios requerem de nós sobriedade, e fazer piadas sobre tais assuntos é meio caminho andado para criar, em quem nos ouve, uma resposta emocional; essa resposta emocional será tão mais forte quão, por um lado, a pessoa sentir a importância do assunto em questão e, por outro, a sua incapacidade de fazer algo sobre o assunto. Tal resposta emocional tornará qualquer possibilidade de ter uma conversa sóbria sobre o assunto em questão praticamente nula.

Outro dos defeitos que nos caracteriza é a facilidade com que falamos em generalidades; por isso, também pedimos perdão. Nos temos que correm, a nossa identidade individual é o pouco que ainda nos resta da nossa humanidade; por isso é tão fácil entender críticas a comportamentos como ataques pessoais. Se, por acaso, dizemos que as pessoas são preguiçosas, há só duas respostas que são possíveis: se não somos preguiçosos, mas sentimos a injustiça inerente a tal afirmação, procuraremos razões que justificam a aparente preguiça das pessoas; se somos preguiçosos, não temos outra hipótese senão sentir e, de igual modo, reagir aos ataques nos fazem - de forma discursiva, ou simplesmente abandonando pretensas de racionalidade, e deixar que as emoções ditem as nossas acções. Todas as outras respostas serão socialmente inválidas, pois revelam falta de compreensão por pessoas que sofrem, e não têm recurso a esse sofrimento.

E o assunto é sério. Não vale a pena amaciar as palavras: estamos sob ataque. O ataque não começou agora, mas estamos a assistir à sua fase final. O inimigo não poderia ser mais poderoso, e difícil de combater. É esse inimigo que nos faz sentir que a realidade está esgotada, tal como temos vindo a demonstrar com os posts sobre o software e os algoritmos; e é ele quem está por detrás dos acontecimentos recentes, seja o bicho ou a guerra, e mais do que isso é ele quem guia a resposta que quem está à frente da nossa sociedade (políticos, media, ou poder económico). O mundo comido é, na verdade, o mundo caído - é essa a piada.

The psychological trials of dwellers in the last times will be equal to the physical trials of the martyrs. In order to face these trials, we must be living in a different world. Blessed Seraphim (of Platina)

O mundo está construído para simultaneamente nos aproximar dele, e ao mesmo tempo remover qualquer possibilidade de efectivar a nossa agência. É uma perspectiva realmente exasperante, saber que temos o mundo contra nós, feito para despoletar raiva, frustração, e acédia. Não há resposta a dar a este problema, pelo menos não dentro do mundo em si. Estamos pressionados contra as fronteiras da lógica, como se os teoremas da incompletude de Gödel tivessem sido transpostos para o nosso dia-a-dia; acreditamos que não há nada para além da aplicação da lógica à matéria (e daí acreditarmos na técnica, matemática, tecnologia, ciência, engenharia, política), mas somos confrontados com a intuição inabalável de que algo está mal e não tem remédio.

Se a descrição do problema nos parece correcta, a nossa resposta a ele não tem a mesma sorte. É verdade que o mundo está desenhado para ser assim, mas isso não nos obriga a ceder-lhe. Claro que continuamos a ter de viver nele, mais ou menos inseridos, e com necessidades materiais que quase sempre nos obrigam a ter de lhe prestar contas. Mas há algo essencial onde não podemos ceder, e é precisamente essa essência que nos querem tirar.

Parece-nos que o grande desafio do ser humano moderno é o combate nesta guerra espiritual, cuja face mais visível nos tempos que correm (mas longe de ser a única) é a nossa propensão para o desenvolvimento de problemas psicológico: nervos, ansiedade, frustração, depressão, acédia, tudo diferentes faces da mesma moeda. Theodore Kaczynski escreveu-nos sobre como a nossa remoção do power process leva ao desenvolvimento de muitas das doenças (clínicas e não só) modernas. A estratégia de, simultaneamente, destruir todas as possibilidades de acção local e simultaneamente fazer-nos crer de que as coisas que importam estão fora do nosso alcance tem dado óptimos resultados.

Há poucas alturas melhores para perceber a resposta a dar nesta guerra espiritual do que as 7 semanas que se aproximam. A celebração da Quaresma é uma das partes mais importantes para conhecer o Mistério de Cristo: a Sua Vida, a Sua Crucificação, e a Sua Vitória sobre o mesmo inimigo que agora enfrentamos. E não nos enganemos, porque o assunto é sério: é com Ele e por Ele que conseguiremos passar por isto. Tudo o resto são as armadilhas do inimigo.